
"Passamos o dia girando sob Paris pois o metrô é mais veloz e não se pode perder tempo. A belle ville está em cima, praticamente desconhecida."
Escrevi uma crônica para o jornal O Povo sobre um dia na VII Reunião de Antropologia do Mercosul. Mas foi na tarde anterior à narrada naquele texto que aconteceu a apresentação mais emocionante que pude ver naquele Grupo de Trabalho, entre outros trabalhos sobre moda, corpo e aparências na construção de identidades sociais na contemporaneidade.
Como pesquisa de campo para sua tese de doutorado, pela Universidade Estadual do Ceará, Cleide Amorim passou os anos de 2001 e 2002 acompanhando a vida das modelos brasileiras que vão tentar carreira internacional em Paris. Elas têm três meses para mostrar ao mercado quem são e conseguir trabalho. É quando expira o visto de turista. São belas, estão com 16 anos e muito longe de casa.
Já chegam lá devendo: a passagem, o novo book e os composites (cartões de visita com fotos, medidas e contato), o aluguel do apartamento que dividem com outras modelos (nunca brasileiras, para que aprendam logo a se comunicar em inglês) , o adiantamento semanal para comer, comprar tíquetes de metrô, colocar crédito no celular e comprar roupas dignas de uma modelo internacional.
Os resultados dos concursos da cidadezinha natal até chegar a uma etapa nacional, nada disso vale por lá. "Moda é tempo presente." Mas as jovens não conseguem - nem podem - esquecer de sua família no Brasil. É a família que financia a sua trajetória até ali e que vai insistir que elas sigam em busca do sonho e das benesses do sonho realizado: fama, dinheiro, glamour. "Eu nunca tive a chance que você tá tendo de melhorar de vida." Outra dívida a pagar.
Gisele Bündchen elevou o valor das modelos brasileiras, mas isso não significa que eram o único tipo em voga naquele período. Cleide conta que as "russas", originárias dos países que formavam a ex-União Soviética, eram suas maiores rivais e que competiam ferozmente pelo mercado de trabalho. As "russas" fariam de tudo para não voltar à "Rússia". As brasileiras, nem tanto. As brasileiras acham o Brasil melhor - a família, os amigos, a comida, o clima.
Para os agentes, as brasileiras eram difíceis pois faziam corpo mole na hora de aprender o inglês, por exemplo. Até porque conseguiam muita coisa com um simples sorriso. Mas também eram reconhecidas por agüentarem trabalho duro. Ficar de pé muitas horas sem reclamar, por exemplo. Eram mais dóceis, mais afáveis que as européias. E em frente às câmeras, tinham que saber decodificar a estranha solicitação: "seja brasileira". E atendê-la.
"As meninas lembram que além de seduzir é preciso ter muita paciência. Esperar que seu nome seja chamado. Reconhecer seu nome no sotaque da recepcionista. Dirigir-se à sala ao lado onde estão os clientes. Entrar sorrindo, dizer bonjour e não dizer mais nada. Entregar o book e os composites aos clientes. Atender aos comandos: walk, smile, stop. Manter o sorriso. Não se ressentir ao ver o manuseio desinteressado do seu book, sua carteira de identidade de modelo. Controlar-se sempre. Pegar o book de volta. Dizer merci e au revoir ao sair. Esperar pacientemente que os clientes tenham percebido a sua diferença e que eles liguem para a agência. É preciso também correr, pegar o metrô, chegar ao próximo casting, talvez ele se transforme em job, quem sabe até pode ser o job, o job mágico, aquele que vai revelá-la ao mundo, que vai subtrair todos os castings humilhantes, que vai torná-la uma escolhida a priori."
Este é um trecho do artigo de Cleide Maria Amorim dos Santos, "Tornar-se Modelo Internacional". Ela trata do assunto de forma emotiva, mas muito pouco deslumbrada. Talvez por vir de pesquisas anteriores na área da exploração sexual infantil em Fortaleza, que lhe renderam uma monografia de graduação e uma dissertação de mestrado.
Explica a guinada no "tema" chamando atenção para o fato de que os grupos estudados têm características semelhantes. São meninas dos 12 aos 17 anos (aos 18 já são consideradas "velhas"), que lidam com a sedução e cujos sonhos de ascenção passam pelo Exterior (uma carreira internacional, o casamento com o estrangeiro).
Além disso, deixam de estudar cedo por conta do trabalho. "Sem o aporte da educação formal, elas aprendem a valorizar o conhecimento empírico, a tentativa e erro do cotidiano, a observação do jeito do outro, a ação mimética". São carreiras curtas e decisivas na vida dessas meninas, que estão aí para atender a "pedidos".



